quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Açores 2008


A abrir

O jornalista açoreano Joel Neto fez-me companhia no voo de Lisboa para Ponta Delgada, era um artigo na revista da SATA que me dediquei a ler. Devo dizer que não gostei na altura, pois defendia que os Açores dispensavam o turismo; mas dei comigo, ao longo desta visita que fiz, a minha muito adiada primeira visita, a aceitar a opinião dele não como uma metáfora mas algo de directo e bem concreto. Mesmo sendo eu um turista, afinal...

A indústria do turismo está a começar a cair com toda a força sobre os Açores, e daí não vai esperar-se nada de bom, antes pelo contrário. Da construção desenfreada que anda a projectar-se para a paradisíaca Praia Formosa, à conversão total de Furnas em vila turística, passando por um panorama incessantemente encantador, é certo que tacanho mas dum encanto idílico, Joel Neto toca numa ferida que para ele e outros Açorianos conscientes deve ser já bem profunda, e vai tender a ficá-lo ainda mais.

Eu ao menos tenho a desculpa de ser um turista "artesanal", ou mais correctamente um viajante. E, fazendo um raciocínio pessimista, turistas como nós temos de aproveitar quanto antes o que ainda vai ficando (e é muito) desse encanto.

As comparações com a Madeira são inevitáveis. Não pelo carácter das ilhas — cada uma é única naquilo que oferece — mas pelo que as gentes fazem delas. A Madeira, de tradição sempre pobre, "despertou" para um destino quase só de turismo, muito na linha do Algarve, geralmente com um bom aproveitamento da sua beleza mas vivendo de e para o turismo; São Miguel, por seu lado, tem Ponta Delgada habituada a ser cosmopolita (rota marítimas, agricultura de exportação), sede de élites cultas e duma economia essencialmente rural mas multifacetada e próspera de muitos anos.

Encontrar pratos típicos na restauração não é fácil. É que a gastronomia micaelense, só para falar dessa, vai muito além do cozido feito nas caldeiras em Furnas, da morcela com ananás ou das lapas grelhadas. Mas a maior parte desses "tesouros" fazem-se em casa, não serão talvez "coisa que se apresente às visitas", ficam-se por tascas espalhadas pela ilha, mas em vias de extinção, e em Ponta Delgada nem vê-las... E, ó cúmulo, quando se pede o vinho de cheiro, que é uma gostosa variante do verde tinto, há sempre quem venha torcer o nariz a dizer que é morangueiro, rematando com a sugestão de vinho do Pico — santa ignorância ou medo que a ASAE esteja mesmo ali à frente a pedir o que será duvidável? Se for a primeira, digo com Joel Neto que antes assim, tacanhos mas autênticos. Cabe ao viajante ter artes de penetrar no viver dos ilhéus e assim saborear as verdadeiras delícias, que as há.

Relato

8 de Setembro

Cheguei no dia 8 a meio da tarde, em voo da SATA. Na descida sobre São Miguel pude ver claramente pormenores do relevo que doutra forma nunca mais me foram aparentes, como: os bordos verdejantes da grande cratera da lagoa do Fogo; e os múltiplos cones semeados na planura entre Ponta Delgada e Ribeira Grande, vestígio duma intensa actividade vulcânica que um belo dia terá unido os maciços ocidental (Sete Cidades) e oriental (lagoa do Fogo, Furnas, Graminhais e Tronqueira) para formar uma só ilha.

Chegado ao aeroporto, logo um interessante e potencialmente inesgotável diálogo no posto de turismo. De particular importância para mim foram o bom mapa da ilha, editado pelo Parque Atlântico, uma espécie de Centro Comercial Vasco da Gama em ponto pequeno, e os horários dos autocarros da ilha. Há três companhias: a Auto Viação Micaelense, que faz toda a parte ocidental, incluindo Sete Cidades; a Caetano Raposo & Pereira, que se encarrega da costa norte a leste de Rabo de Peixe, até Nordeste, incluindo uma ligação a Furnas; e a Varela & Cª, que faz o restante, ou seja a costa sul a leste de Ponta Delgada até Povoação e Achada. Com este serviço, acho que se dispensa o aluguer de automóveis.

Mas houve uma decepção: só se sai do aeroporto de táxi... ou carro alugado. Nem um autocarro ou minibâse (porém a linha amarela não fica longe, era só um pequeno desvio), não dá para perceber paradoxos destes, sinceramente... Bem, também se sai a pé, mas anda-se um bom bocado, e eu ao optar por essa via acabei por desorientar-me e fui parar a Arrifes! Mas a descida da longa Avenida João Paulo II, desde a igreja de Arrifes, acabou por valer a pena, primeiro porque me deu para aperceber-me duma certa perda da noção do tempo - que melhor recepção de férias eu podia ter? Fiquei a amar os Açores desde logo!


Pelo caminho, mais ou menos a meio da descida, noto uma capelinha com a imagem duma coroa real desenhada no empedrado do passeio. Olhando para dentro, estavam, em extremosa ordem e muito asseio, paramentos para as Festas do Divino Espírito Santo, uma tradição religiosa que persiste, "rebelde", apenas nos Açores. Outras surpresas, um pouco antes (mais acima, portanto), foram uma colecção fenomenal de porta-chaves a forrar as paredes duma garagem, e o Barbeiro Benfica com um minimuseu bastante pitoresco.

Alojei-me no Palácio do Jardim (Jardim José do Canto, mesmo ao lado do Jardim Jácome Correia, onde se encontra o Governo Regional). Pertence à família descendente de José do Canto, um burguês importante do século XIX que foi um dos expoentes do regionalismo, ele próprio descendente duma família que se instalara já no século XV. A residencial é no piso inferior, o que na liguagem upstairs-downstairs dos britânicos quer dizer que eram os aposentos da criadagem. Espaçosos, embora com pouca luz natural, contudo serviram perfeitamente. E com o privilégio de estar no meio dum verdadeiro jardim botânico (nenhum naturalista o teria desprezado), onde destacaria os impressionantes maciços de bambu, e tantos testemunhos de carinho que hoje permitem tê-lo repleto de árvores monumentais, ou um enorme canteiro em forma de anel com hortênsias, tudo com um bom gosto irrepreensível. Eles tratavam-se bem... tanto que não havia visitante ilustre, Português ou estrangeiro, que não tivesse de fazer a sua paragem no Jardim, citando-se desde D. Carlos até Jorge Sampaio.


Depois de instalado, ainda deu para dar uma voltinha pela cidade e familiarizar-me, ver a zona baixa e algumas igrejas, saber donde partiam os autocarros para Furnas (mesmo em frente do posto de turismo na marginal, a uns 100 metros das Portas da Cidade), e ter o primeiro gostinho das queijadas de Vila Franca...

9 de Setembro

Com calma, lá me meti no autocarro do Varela & Cª para Povoação. Viagem calma, pelas paisagens naturais e humanas que a ilha oferece. Há de facto um toque alentejano na arquitectura, mas eu diria que a herança micaelense é mais complexa, e são de reconhecer-se traços das Beiras na fundação desta ilha, aliás propícia a isolamentos geradores de contrastes entre populações locais. Mas isso tem de ficar para outra visita. Só por si, a chegada a Furnas é um espectáculo, primeiro com a lagoa a revelar-se à saída dum belo troço com vegetação densa, depois com o vale vizinho, que é na verdade uma enorme caldeira onde se encontra a vila, uma espécie de vale encantado onde nos apetece esquecer o resto do mundo.


Novamente a visita da praxe às instalações do turismo, mais conversas interessantes, mapas, etc.. A pensão que tinha resrvado, Vista do Vale, fica um pouco fora do centro da vila, assim preferi primeiro fazer as visitas obrigatórias: reservar uma refeição de cozido para o almoço desse dia (nem todos os restaurantes o fazem para o próximo dia nem para apenas uma pessoa, enfim, nesse aspecto tive alguma sorte), provar bolo lêvedo (da Nélia), e as fumarolas, incluindo também as curiosas nascentes de água com diferentes sabores e temperaturas, aquela que se chama azeda é na verdade tipo água das pedras, fresquinha por sinal. Curioso espectáculo o destas poças de água a ferver, o chão morno, as sacas com maçarocas de milho postas ali a cozer (outra especialidade de Furnas). Fiz o check-in, admirei por momentos a bela vista que se tem da varanda do quarto, e segui para o almoço.

Depois do almoço de cozido, um dos pontos cimeiros da minha experiência gastronómica nesta viagem, já estava preparado para a ideia de fazer umas passeatas a pé. Não imaginava que iam ser 6 horas de caminhadas por vezes difíceis, e ainda bem que não pois seria imperdoável se, por preguiça, perdesse o que me esperava nessa tarde. Usando os mapas e perguntando umas coisas resolvi tentar um caminho que saía do largos das bicas, indicado como o "trilho da lagoa". Após uma subida inicial estava já em pleno campo, com as vacas bem pachorrentas espalhadas por extensões sem vivalma, entregues a si mesmas como rezam as crónicas. Do lado direito, subindo abruptamente, a crista da caldeira, para a qual me dirigi por um trilho que, em direcção oposta à da lagoa, atinge o Pico do Ferro, donde se tem uma paisagem soberba sobre a lagoa, sobre a vila, sobre os picos distantes. Trata-se dum trilho íngreme e de piso às vezes difícil, embrenhado em floresta densa e muito húmida, que só não é virgem porque tipos como eu se lembram de atravessá-la. Pelo caminho têm-se vislumbres da paisagem que são únicos, mas a proximidade com esta "selva" foi para mim o maior motivo de satisfação.
Pico do Ferro
Os roteiros para caminheiros dizem para fazer a subir o caminho que para mim foi de regresso, isto é, o mesmo mas a descer, tendo-o eu prolongado até à lagoa, ao sítio onde se põe o cozido a fazer e há um parque de merendas. Mais fumarolas, mais daquele aroma sulfúreo que não é desagradável e nos visita o estômago com o cozido. Ao longe, uma ermida que aparece muito nas fotografias, fui até lá pelo caminho que bordeja a lagoa, com algumas quintas pelo caminho, que oferecem turismo rural. No meio da paisagem que é, parecem uma opção excelente.

Almoços do dia seguinte
Chegado à ermida fiquei um pouco decepcionado mas aproveitei para descansar os pés, apreciar a paisagem onde, incessantes, as fumarolas marcam a sua presença no canto norte da lagoa, mesmo na base do imponente Pico do Ferro. Não sei quanto tempo fiquei ali, sei que não me apetecia sair daquela praia mas teve de ser, pois queria ver mais coisas enquanto havia luz. Na estrada para a vila vê-se a certa altura um desvio para a Várzea, que nos leva até um miradouro, a Lomba dos Milhos, com uma vista espantosa sobre a caldeira onde se encontra a vila, com o Salto do Cavalo, as fumarolas, o Parque Terra Nostra. Adorei. Uma nota: é um bocado mais difícil encontrar o caminho a partir da vila, e a subida é proibitivamente íngreme.


À noite ainda passeei qualquer coisa, mas a vila estava demasiado recatada, dei meia volta e preparei-me para o dia seguinte.

10 de Setembro

Tinha autocarro às 10 horas, por isso o tempo ainda chegava para ir à Poça da Beija, uma fonte termal que se anunciava como um verdadeiro jacuzzi de água quentinha - e querem ver que é mesmo verdade? Na própria poça temos o jacuzzi, mas a Junta resolveu ampliar o aproveitamento desta água com duas piscinas e uma cascata sobre a ribeira. Chega para várias pessoas, é de borla e está aberto das 8 da manhã até às 10 da noite. Melhor que qualquer luxo imaginável. Bem perto ficam dois restaurantes de boa reputação para o cozido, o Águas Quentes e o Cantinho da Poça. Mas eu comi no dia anterior, no Miroma. No regresso passei pela Rosa para comprar bolo lêvedo, bolo do forno (uma versão salgada com torresmos, um pouco rija) e a tal queijada maravilhosa que é só dela.

Na igreja matriz da vila consegui fotografar a mais expressiva estátua do Sagrado Coração de Jesus que já vi alguma vez. Uma beata disse que deve ter vindo "do Continente". Ainda deu tempo para ir à frutaria defronte, queria abastecer-me para a estadia em Santa Maria, comprei nomeadamente o bolo de sertão, eu diria que parecido com a tradicional sêmea do Norte de Portugal.

Cheguei a Lagoa perto da hora do almoço, e para ir almoçar. Há um sinal que aponta mais para o interior a dizer restaurantes, mas só vi um, não parecia nada de especial e a minha aposta era que houvesse restaurantes no porto de pesca. Comprovou-se! Bem ao fundo duma rua bem comprida lá estava um pequenino porto, carregado de barquinhos em seco, pescadores a coser redes, e três restaurantes de diversos tipos, um dos quais mesmo por cima do molhe. Respirei por um momento a mansidão daquele recanto idílico, e comecei a ver ementas. Quando vi que o prato do dia na casa de pasto O Rabaça era imperador, um dos peixes que, quando autêntco, eu mais gosto de comer, entrei. Acanhada, sobrelotada, castiça, fotos da selecção de futebol que foi às diversas fases finais, o lugar tinha tudo o que eu podia querer duma casa de pasto à antiga. Mal eles sabem o prazer que eu, com a minha costela sesimbrense, tirei de ali estar...

A igreja matriz de Lagoa é singela mas tem um altar bastante bonito.

O resto não tem grande novidade. Chegado a Ponta Delgada consegui perceber como é o caminho certo para ir e vir entre o centro da cidade e o aeroporto com tansportes públicos e a pé, e enquanto esperava pela hora de partir para Santa Maria entretive-me numa loja de artesanato que há lá dentro, já então apercebendo-me de que ali os preços do artesanato não eram abusivos. Também tirei uma foto aos taxistas a jogarem às cartas, quem tem clientela assim garantida bem se pode dar a luxos destes, quando não jogam às cartas estão na palheta uns com os outros, vida dura esta... Antes de embarcar, comprei um doce de ananás açoreano que havia de ser providencial em Santa Maria. E uma delícia!...

Fomos recebidos em Santa Maria, e note-se que o meu fito principal era fazer um pouco de praia, com um temporal muito desagradável, chuva, vento e frio como ninguém esperava. Os marianenses iam dizendo que estava assim há umas hora mas que iria passar, de facto amainou já de noite, mas foi cá um susto! Fiquei nos apartamentos Mar e Sol em Praia Formosa, freguesia de Almagreira, aonde cheguei transportado de táxi (10 Euros, sem bagagem!), que ficam quase em cima da praia e constituem boa instalação para quem traz tudo para se alimentar durante os dias que lá passa. Existe um bar nocturno ainda mais em cima da praia, o Paquete (com a forma de navio), simpático e muito "Algarve", mas com aquele temporal e o jogo futebol na TV mal abriram.

11 de Setembro

É a partir da manhã seguinte, acordando ao som em que o marulhar das ondas e o leve canto de pássaros, quase sem interferência humana, que finalmente começo a usufruir da Praia Formosa. Um paraíso, uma baía que lembra um pouco Sesimbra, mas sem as construções e embelezamentos turísticos (por enquanto; não deve demorar muito a ficar como tudo o resto, aliás), areia branca finíssima (tanto que chega a flutuar na espuma da rebentação) e uma gloriosa temperatura da água de 23-24 graus logo de manhãzinha. Um delícia entrar e sair do apartamento e só ter de andar uns 20 metros para estar na praia, a qualquer hora do dia. Quando as nuvens deixavam o sol bater mais, a água ganhava aquele tom de esmeralda que faz sonhar, e a única sombra neste prazer todo era mesmo a construção já feita, e aquela que se adivinha estar a fazer-se em menos dum inverno... É certo que existe o famoso festival Maré de Agosto, que atrai multidões para este cantinho abençoado, mas o que se adivinha é muito triste, espero estar enganado... Entre os diversos pormenores preocupantes é a quantidade de campismo selvagem próximo do mar, apesar de haver um parque de campismo em condições. E, pelo que se lê em certos sinais, antes acampavam na própria praia.

Praia Formosa
Há um restaurante à saída da vila, foi lá que provei a "alheira" de Santa Maria, ligeiramente picante mas gostosa. Para comprar abastecimentos é preciso subir a íngreme ladeira até chegar à sede de freguesia, onde a Clotilde tem um minimercado com tudo o que é preciso. Só entrei lá quando ia de saída para visitar a ilha, mas deu para provar cavacas feitas como deve ser (nada que se parecesse com umas que comi em São Miguel). Íngreme, mas cheia de recompensas (além da descida): há um miradouro, com uma impressionante palmeira, que oferece uma vista muito bonita sobre a enseada da praia e tem espaço para fazer assados, numa de piquenique, tudo muito bem arranjadinho. Nesta altura do ano vêem-se florir as beladonas, flores lindíssimas e de aroma magnífico que crescem a partir de bolbos à beira da estrada, parece terem sido ali postas de propósito. Há em muitos sítios na ilha, os micaelenses também as conhecem mas não se vê tão facilmente como em Santa Maria. Elas só aparecem nesta altura do ano, por isso lhes chamam popularmente os "meninos da escola"... Mas foi nesta ladeira que tive de reparar mesmo nelas, de serem tão abundantes (e de ter feito o percurso a pé, claro).

12 de Setembro

A segunda manhã lançou um dia muito feliz. Depois de gozar uma última vez a água do mar às 8 da manhã, foi a despedida da Praia Formosa para tentar aproveitar as horas que tinha até ter de apanhar o avião de regresso a São Miguel. Na Almagreira apanhei um autocarro que saía ao meio dia e meia de Vila do Porto, para ir até Santo Espírito. Tinha a ideia de almoçar nalgum restaurante que lá houvesse e visitar a igreja, mas vi muito mais: o autocarro faz o caminho por Ribeira do Engenho, Feteiras e Santa Bárbara, ou seja uma volta completa a toda a paisagem rural do lado oriental (o verdejante) da ilha; em Santo Espírito é onde fica o Museu de Santa Maria, onde me foi dada a honra duma visita guiada, personalizada; também é lá que existe a Cooperativa de Artesanato, onde se pode apreciar os teares de linho, comprar naperons de linho, os famosos biscoitos de orelha, massa sovada, camisolas de lã... tudo isto são coisas características da ilha e está tudo bem organizado, ali no só lugar. Almoço é que nicles, mas por esta altura já estava habituado ao sistema, já nem ligava... Quanto à igreja, por dentro é muito simples, mas o pórtico de entrada é invulgar, com motivos marinhos (conchas) muito elaborados.


A ilha tem um distinto traço alentejano, mais do que algarvio. Podia discorrer com argumentos, basta deixá-lo registado e que quem visite depois abra os olhos. Já a Vila do Porto não oferece grande interesse, tanto quanto pude ver. Fazendo o atalho por Valverde e Carreira a ligação com Almagreira é muito mais directa.

De regresso a São Miguel, reinstalei-me na Casa do Jardim, onde tinha ficado parte da minha bagagem, determinado a aproveitar Ponta Delgada no dia e meio que sobrava.

13 de Setembro

Ponta Delgada tem três igrejas importantes: a Matriz (Igreja de São Sebastião), a dos franciscanos (Igreja de São José) e a de São Pedro. Qualquer uma delas tem interiores valiosos, e a Matriz trabalhos em pedra nos exteriores com muito interesse. O trabalho em pedra é notável em vários altares da Matriz e sobretudo da de São José, esta aliás chega a parecer rica demais para ter sido um convento de franciscanos, if you ask me... Na de São Pedro é notável a talha dourada e o tecto pintado a imitar pedra trabalhada, impressionante a qualidade artística destes interiores.


O Forte de São Brás, bastião do século XVI, pode suscitar alguma curiosidade, mas o que me parece invulgar em Ponta Delgada são os jardins, não só o de José do Canto onde estive a morar, mas também o agradável Jardim António Borges, já não falando do de Jácome Correia, agora pertença do Governo Regional. O primeiro talvez o mais ambicioso, orientado mais para os turistas, o segundo muito frequentado pelos habitantes da cidade, orientado mais para um estética de recantos, de que destaco aquilo que chamei a cova dos fetos arbóreos.

O rossio da cidade é o Campo de São Francisco, onde se encontra a Igreja de São José e o Convento da Esperança (onde está a imagem do Senhor Santo Cristo dos Milagres, devoção para todos os açorianos), tendo ainda muito perto o Forte. Ainda apanhei uma feira já no seu final, com alguns artesãos interessantes. Almocei lá por perto, na cervejeira Abreu Mello, onde me foi dado provar as lapas grelhadas (em Santa Maria queria fazê-lo, mas desisti; dizem que só em sítios como a Maia e já não era a época...), estavam boas mas o que me soube mesmo bem foram uns borriés, acompanhados pela cerveja preta local. Ao jantar fui à Adega Regional, a meio caminho para a Igreja Matriz, onde posso afiançar comer-se bem e segundo a tradição. Mas soubesse eu... decorria nesse momento o festival de sopas, em Fajã de Baixo!!!

14 de Setembro

Antes de partir só me deu para passear mais um pouco pela baixa, preferi passar mais tempo no aeroporto para explorar a loja de artesanato, estava com ideias de comprar uma lembrança do artesanato de escamas de peixe, acabei por levar algo que se reputa de mais valioso ainda e é igualmente característico, uma escultura de hortênsias em miniatura feita em miolo de figueira. Comprei mais uma dose da lata de doce de ananás para oferecer, teve de ser outra vez no aeroporto porque no supermercado não se encontra, e lá fui eu de volta, com o papo cheio dumas férias nos Açores que não tenciono esquecer tão cedo.

Gastronomia

O cozido das caldeiras é de facto uma especialidade. Aparte algumas peculiaridades açorianas nos ingredientes, é como o cozido à portuguesa, só que com uma diferença importante: é cozido debaixo de terra, em buracos de temperatura fervente junto à lagoa, e isso dá-lhe um aroma único. No que me tocou à mesa, no restaurante Miroma, encontrei carne de vaca, frango, morcela e chouriço açorianos (ambos de sabores invulgares), mão de vaca, batata, batata doce, inhame, couve, couve lombarda, cenoura e arroz. Muito bom, regado com o vinho de cheiro, claro. Antes da refeição foi-me servido o queijo fresco, que em São Miguel apresenta-se como uma pequena merendeira e se deve comer levemente barrado com o molho de pimento, ligeiramente picante, também muito característico. Na minha opinião, dos vários tipos de pão que são servidos (tanto o de mistura como o de milho são muito bons), o que vai melhor com este queijo é o bolo lêvedo, especialidade de Furnas. E o vinho de cheiro, pois claro.

Até com um magnífico imperador que degustei em Lagoa o vinho de cheiro vai bem! Foi uma inspiração que me deu, em vez de ficar para almoçar segundo dia em Furnas, decidi apanhar a carreira para Ponta Delgada às 10 horas e parei em Lagoa, à procura de bom peixe no que é descrito (muito justamente) como uma terra de pescadores. Não me arrependi nem um pouco, nada. À chegada foi só descer até ao porto, e enfiei-me numa casa de pasto chamada O Rabaça, mas não digo com isto que os outros restaurantes do porto sejam menos boa ideia. Foi-me servida com a refeição a chamada cebola de curtume (em Ponta Delgada vê-se esta conserva à venda), um acepipe desenjoativo que soube bem, e pudim da terra, em que a "terra" é chocolate negro pulverizado -- outra cor não podia ser, claro -- bom mas nada de transcendente.

Enquanto se está em São Miguel é de provar e provar sempre o chá produzido localmente (Gorreana ou outro), um pouco mais diluído mas com bom gosto, e principalmente agarrar todas as oportunidades para comer as queijadas de Vila Franca do Campo, uma das tais especialidades nascida nos conventos e que entretanto foram adoptadas pelo povo. Isso sim, é transcendente. Ao que parece só duas versões são autênticas, e são segredo de duas famílias aparentadas entre si: a de rótulo verde e a de rótulo vermelho. Preferi a verde, menos seca, mas ambas são excelentes. O que não esperava era dar com uma queijada igualmente boa em Furnas, à venda na Rosa, uma das produtoras do bolo lêvedo (as outras produtoras de bolo lêvedo são a Glória e a Nélia).

Chá e queijada
Em Ponta Delgada lá consegui comer o chicharro com molho de vilão, traduzindo: carapau frito que se rega com molho à base do tal pimento. Não estava mal, e posso recomendar convictamente o restaurante, chama-se Adega Regional. Mas era a última noite em Ponta Delgada e, se eu tivesse sabido, não estaria lá mas em Fajã de Baixo, onde precisamente naquele momento tinha lugar o Festival de Sopas açorianas, onde o que o melhor das especialidades feitas pelo povo, uma sabedoria ancestral que parecia estar ameaçada de extinção, é ali servido au volant. Nem que seja com esse pretexto, e o de partir à descoberta da gastronomia micaelense na costa norte da ilha, hei-de voltar lá para participar nesse repasto!

Em Santa Maria há de certeza muita coisa interessante para provar, nomeadamente tudo o que tenha a ver com panificação. Têm um doce característico, a cavaca, que se desfaz na boca que é uma delícia, mas a que comi em São Miguel não se comparava; foi lá que também provei a massa sovada, massa de bolo rei muito bem confeccionada a fazer um pão grande, e os biscoitos de orelha muito "alentejanos" no estilo e excelentes. A alheira é uma curiosidade interessante, juntou-se bem com uma morcela e chouriço bastante parecidos com os de São Miguel.

Mas ficou-me a saber a pouco também aqui, porque ouvi falar de bons petiscos do mar em pequenas aldeias como Maia. Mais um motivo para querer aqui voltar...

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